Um passo à frente e outro atrás

Acordo com a bancada conservadora da Câmara excluiu alguns pontos centrais do texto original do projeto. Para integrante do movimento negro “o fato do Estatuto ter sido aprovado, já é uma conquista”

Acordo com a bancada conservadora da Câmara excluiu alguns pontos centrais do texto original do projeto. Para integrante do movimento negro “o fato do Estatuto ter sido aprovado, já é uma conquista”

24/09/2009

Michelle Amaral,

Da Redação

As diferentes avaliações quanto ao grau de influência sobre a realidade do racismo no Brasil não impossibilitaram que a maior parte do movimento negro apontasse a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial como uma conquista, mesmo que esta seja apenas do ponto de vista simbólico.

O projeto original do Estatuto, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), aprovado na Câmara dos Deputados no último dia 9, sofreu alterações em seu texto durante a tramitação na Câmara dos Deputados e resultou em um texto substitutivo, do deputado Antônio Roberto (PV-MG), relator do projeto. Em alguns pontos, reivindicações históricas da população afrodescendente ficaram de fora. O Projeto de Lei nº 6264, de 2005, foi analisado por uma comissão especial da Câmara e aprovado por unanimidade em caráter terminativo, sem necessidade de ir à votação em plenário.

As alterações no texto do projeto foram resultado de um acordo feito entre o ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Edson Santos, e membros da comissão, inclusive do partido Democratas, que move ações de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a política de cotas raciais da Universidade de Brasília (UnB) e contra o decreto presidencial de regularização de terras quilombolas.

Na avaliação de Douglas Belchior, membro do conselho geral da União de Núcleos de Negros e Classe Trabalhadora (Uneafro), a alteração no texto do Estatuto “esvaziou o potencial político do projeto do senador Paulo Paim”. Para ele, a tramitação na Câmara atendeu “aos interesses dos poderosos”.

Já Marcelo Paixão, diretor de graduação do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Movimento Negro do Rio, avalia que o acordo com a bancada conservadora da Câmara foi necessário para que o texto fosse aprovado. Em sua visão, “o fato do Estatuto ter sido aprovado, já é uma conquista”.

Entre os artigos retirados do projeto original estão as duas questões contestadas judicialmente pelo DEM: o texto substitutivo não contempla a obrigatoriedade de cotas para afrodescendentes nas universidades e não define os marcos para o reconhecimento das terras de remanescentes dos quilombos.

Além disso, também excluiu-se do Estatuto a garantia de cotas para afrodescendentes na mídia, a exigência por parte do Sistema Único de Saúde de identificar os pacientes pela raça e reduziu-se a cota nos partidos de 30% para 10%.

Medidas efetivas

O Estatuto estabelece, entre as políticas de proteção e promoção da igualdade, a garantia de vagas nas instituições de ensino médio e superior para afrodescendentes, o ensino da história geral da África e da população negra do Brasil, a possibilidade de o governo criar incentivos fiscais para empresas com mais de 20 empregados e pelo menos 20% de negros e a reclusão de até três anos para quem praticar racismo pela Internet.

Além disso, o texto também estabelece a capoeira como esporte e garante o livre exercício dos cultos religiosos de origem africana.

No que diz respeito à segurança, o Estatuto prevê a criação de Ouvidorias Permanentes em Defesa da Igualdade Racial para acompanhar a implementação de medidas e a adoção por parte do Estado de ações para coibir a violência policial contra a população negra.

Recentemente, o Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais da UFRJ, do qual Marcelo Paixão é coordenador, fez um levantamento com base em dados do Sistema Único de Saúde (SUS), referentes a 2006 e 2007, e constatou que no Brasil o número de homicídios entre negros é duas vezes maior que entre brancos.

Segundo Paixão, a população negra está mais exposta a situações de riscos que a população branca em várias regiões do país. O professor explica que trata-se de uma questão social, do modo como os negros estão inseridos na sociedade.

“Não acredito que as medidas do Estatuto, se não vierem acompanhadas de outras medidas efetivas, vão conseguir mudar esse quadro” opina Paixão e afirma que é necessário o envolvimento de vários ministérios para a promoção da igualdade racial. “Essas questões exigem uma política de Estado, não devem ficar a cargo de uma secretaria ou de um ministério, é necessária uma ação coordenada de vários ministérios e uma mudança de rumo nas políticas públicas”, defende.

Vitória para ser aprofundada

Marcelo Paixão pondera que o Estatuto poderia ser ampliado. “Deveria ser um Estatuto mais ousado, com políticas mais aprofundadas”. Ele ressalta a importância da intensificação das lutas sociais em torno da questão para que de fato se consiga a igualdade racial no Brasil e afirma que o próprio Estatuto é fruto dessas lutas. “O que vai fazer o Estatuto se transformar de letra morta para medidas efetivas são as lutas sociais”.

Neste sentido, Paixão afirma que a aprovação do Estatuto foi uma vitória parcial, porque significou “que o Estado brasileiro está reconhecendo a necessidade de políticas voltadas à comunidade afrodescendente”.

Douglas Belchior também concorda e acrescenta que esta aprovação representa “um momento simbólico, um marco regulatório importante para o movimento negro”.

Desdobramento

Agora, há a expectativa em como o Estatuto será recebido no Senado Federal, onde poderá ser analisado por uma comissão ou ir à plenário. Marcelo Paixão alerta que é necessário se “ter prudência em dizer que a aprovação do Estatuto na Câmara foi um grande passo histórico”, porque ainda precisa passar pelo Senado, “que é mais conservador que a Câmara”.

Belchior, por outro lado, acredita que no Senado o PL seja aprovado, inclusive por conta da presença do senador Paulo Paim, autor do texto original. O membro da Uneafro, no entanto, reconhece que “há a necessidade de se intensificar a luta” em torno do tema, de modo que haja uma pressão social para a aprovação do Estatuto sem que sejam retirados outros pontos de seu texto. “Nós esperamos que ele[o Estatuto] não seja ainda mais esvaziado”, pondera Belchior.

Se aprovado, o Estatuto deverá ser sancionado pelo presidente da República. Espera-se que a sanção aconteça no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.

Publicado originalmente na Agência Brasil de Fato.

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